Democracia golpeada
Em recente artigo publicado no site de CartaCapital, o colunista Roberto Amaral, cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, alerta que a democracia continua a ser golpeada “nos estritos termos da legalidade formal”. À primeira vista, parece um contrassenso associar o pendor autoritário à legalidade. Mas a história da República brasileira, fundada na ruptura da ordem monárquica por uma sublevação militar, diante de um povo “bestializado, atônito e surpreso”, como observou à época o cronista Aristides Lobo, é pródiga em exemplos que desafiam a definição clássica de golpe de Estado como a tomada do poder por meios ilegais.
Em sua arguta e precisa análise, Amaral observa que mesmo os golpes grosseiramente ilegais, “levados a cabo por manu militari”, como os que instituíram as ditaduras do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e dos governos militares (1964-1985), não tardaram a ser recepcionadas pelo Poder Judiciário, “de onde deriva o diploma da legalidade que nos preside”. Nesse contexto, o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff, sem a comprovação de um crime de responsabilidade praticado pela então presidente, e a prisão ilegal de Lula, fruto do conluio lavajatista para retirá-lo da corrida presidencial de 2018, representam modalidades de golpe muito mais ardilosas, pois não são resultantes de quarteladas, e sim de conspirações gestadas dentro das próprias instituições republicanas.
Se o jornal O Globo levou 49 anos para se retratar com o povo pelo apoio manifestado ao golpe de 1964, a partir do qual os militares se revezaram no poder por 21 anos, praticando toda sorte de violações aos direitos humanos, quanto tempo levará para reconhecer que, num regime presidencialista, não basta o chefe do governo perder apoio no Parlamento para ser destituído, é preciso comprovar um crime de responsabilidade, e as tais pedaladas fiscais atribuídas a Dilma não passaram de um frágil pretexto para rasgar os votos de 54 milhões de brasileiros? (pretexto este que poderia ter derrubado metade dos governadores da época se a vara que bate em Chico também açoitasse Francisco). Quando pedirá desculpas por ter fechado os olhos a todas as ilegalidades cometidas pela Lava Jato, tardiamente reconhecidas pela Suprema Corte ao anular as condenações de Lula?
Inútil especular sobre o tempo que os veículos de comunicação que sustentaram essas farsas levarão para fazer seu exame de consciência. Fato é que, como demonstra Amaral, o grupo político derrotado nas eleições de 2022 continua a dar as cartas no Brasil. Sob o comando do cacique alagoano Arthur Lira, excessivamente empoderado por Jair Bolsonaro nos últimos anos, a Câmara dos Deputados converteu-se em um poderoso colegiado do atraso e do conservadorismo mais rasteiro. “Legisla contra o progresso, é adversário da igualdade social, agente do capital rentista, avesso aos direitos trabalhistas”, enumera Amaral. Com uma frágil base parlamentar, o governo Lula tem sido sistematicamente chantageado a cada votação na Casa.
No fim de maio, o presidente precisou liberar 1,7 bilhão de reais em emendas parlamentares para aprovar, aos 45 minutos do segundo tempo, a medida provisória que reestrutura a Esplanada dos Ministérios. Por pouco, poderia ser forçado a governar com a antiga estrutura deixada por Bolsonaro. Ao cabo, conseguiu preservar o arranjo político que sustenta sua frágil base parlamentar, mas não sem contabilizar perdas – a exemplo dos braços amputados das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas pela bancada ruralista, com a cumplicidade das rapinas do chamado “Centrão”.
Não bastasse, Lula vê sua política econômica ser sistematicamente sabotada por um inimigo interno plantado pelo antecessor. Nomeado por Bolsonaro, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tem mandato garantido até o fim de 2024 e reluta a baixar a abusiva taxa básica de juros, mantida em 13,75% desde agosto do ano passado. Ainda em março, Joseph Stiglitz, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, observou que a taxa real de juros praticada pelo Brasil, muito acima da inflação e a maior do mundo, é “chocante” e capaz de “matar qualquer economia”.
De lá para cá, o ministro da Fazenda deu garantias de controle dos gastos públicos por meio de um novo arcabouço fiscal, a inflação refluiu – ficou em apenas 0,23% em maio e pode apresentar resultado negativo em junho – e o crescimento do PIB no primeiro trimestre (1,9%) ficou acima das expectativas do mercado. Mesmo com os inequívocos sinais de melhora do cenário econômico, Campos Neto têm ignorado os apelos do governo, da indústria e do varejo para baixar os juros, um freio ao consumo no País.
A última voz a se rebelar com a intransigência do presidente do BC foi a empresária Luiza Trajano, controladora da rede varejista Magazine Luiza. “Sem um sinal, não vamos aguentar. Quantas lojas aqui já foram fechadas? Quantas pessoas já foram mandadas embora? A desigualdade social é muito grande. É o emprego que salva as pessoas. Queria te pedir, em nome dos brasileiros, para dar um sinal. E não é de 0,25 ponto, que é muito pouco. Precisamos de mais”, afirmou Trajano na segunda-feira 12, durante um encontro promovido pelo Instituto para o Desenvolvimento do Varejo. Presente na ocasião, Campos Neto esquivou-se do apelo, prometendo retornar ao evento em 2024 com a inflação controlada e melhores perspectivas para o setor. “Vai ter muita gente quebrada, já”, rebateu Trajano.
Os episódios demonstram claramente que o projeto derrotado em 2022 continua em pé, a despeito da vontade manifestada nas urnas pelos brasileiros. A democracia segue sendo golpeada, com o apoio de amplos setores da mídia que ainda não se desculparam pela inestimável contribuição dada ao golpe de 2016, crime continuado pela imposição de medidas que aprofundaram as desigualdades e arrastaram 30% dos brasileiros para a fome, enquanto outros 30% não sabe se terá o que comer no jantar.
CartaCapital reafirma o seu compromisso de defender a democracia e lutar para que a vontade manifestada pelo povo nas eleições de 2022 seja respeitada, mas precisa do seu apoio para manter a vigilância e denunciar os reiterados golpes à soberania popular.
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Por Rodrigo Martins – Carta Capital