Guerra na Ucrânia deixará 14 milhões com problemas de saúde mental, diz ministro ucraniano
Em entrevista ao GLOBO, Viktor Liashko fala sobre entraves logísticos do sistema de saúde, da falta de medicamentos e do controle da Covid-19 em meio aos ataques russos
Aos 42 anos, o médico ucraniano Viktor Liashko tem a árdua tarefa de ser o ministro da Saúde do país invadido pela Rússia há quase 11 meses. Especialista em saúde pública, trabalhou em departamentos de estado centrados em epidemiologia e assumiu a pasta da Saúde da Ucrânia em 2021. Em entrevista ao GLOBO, ele fala das dificuldades de comandar a assistência em um país onde os entraves logísticos impedem, por vezes, o cuidado dos mais necessitados ou praticamente esgotam a possibilidade de oferecer tratamento para doenças sérias, como diabetes e câncer.
Como se mantém o sistema de saúde em funcionamento durante uma guerra?
Mesmo com o sistema de saúde operando em uma situação bastante apertada, em condições intensas, os médicos e hospitais seguem trabalhando com uma qualidade impressionante. Temos de admitir, porém, que os recursos são limitados e que o sistema está sob pressão, principalmente porque a Rússia segue bombardeando nossa infraestrutura. Ainda há bombardeios russos em importantes bases de infraestrutura e energia, além de pontes e estradas. Devido à invasão, nossos portos estão inoperantes, e não há conexão aérea com a Ucrânia, o que dificulta o transporte de medicamentos. Apesar disso, oferecemos atendimento aos que precisam. Agradecemos, inclusive, aos que forneceram ajuda humanitária a nossos doentes.
Quais países estão colaborando neste momento?
Recebemos (em doações) por volta de 10,5 toneladas de suprimentos médicos. Uma parte importante da colaboração, em geral, vem dos EUA, de países da União Europeia e do Canadá, entre outros locais. Além da ajuda dos governos, há também doações dos próprios cidadãos.
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Há algum tipo de medicamentos faltando no país? Há drogas suficientes?
Por causa da escala da guerra, temos, de tempos em tempos, crises relativas ao abastecimento de fármacos. Agora o problema está em oferecer tratamento às pessoas com câncer. No começo da guerra, houve complicações com a disponibilidade de drogas para o controle do diabetes.
Quantos hospitais foram afetados? Como atender as pessoas sem eles?
Cerca de 150 instalações de saúde foram completamente destruídas, sem chance de reparo. Em casos assim, tentamos desenhar uma rota para que as pessoas que moram nas proximidades desses locais destruídos sejam atendidas em instituições de outras cidades. Também temos brigadas móveis, que funcionam em locais seguros e em áreas em que já há ocupação (dos russos).
Como está a vacinação para Covid-19? A doença está controlada?
Apesar de estarmos em guerra, conseguimos manter a Covid-19 sob controle. Temos vacinas e testes disponíveis. Além disso, observamos constantemente quantas pessoas necessitam de hospitalização pela doença e de ventilação mecânica. Não temos nenhum surto agora. A situação epidemiológica é parecida com a de outras partes mundo. É claro que agora é mais difícil identificar de forma precoce algumas doenças pela falta de segurança sob os bombardeios — manter a vida é uma prioridade maior. Também é mais difícil aferir a doença nas áreas rurais. Por um lado, essa situação dificulta o diagnóstico, mas também serve para romper a cadeia de transmissão.
Qual público mais lhe inspira preocupação?
Os maiores desafios, em termos de saúde pública, são os idosos que têm pouca mobilidade ou não conseguem se locomover. Eles são especialmente difíceis de acessar para oferecer o tratamento de que precisam. No caso dos combatentes, há diversas etapas de atendimento, como o socorro em campos de batalha e hospitais de linha de frente. Ainda há a possibilidade de serem encaminhados para outros hospitais em outras partes do território da Ucrânia.
E as gestantes?
Sempre tentamos transferir as grávidas de áreas mais arriscadas, onde há combates, para cidades menores, onde podem dar à luz em segurança. Porém, tendo em vista o terrorismo provocado pela Rússia, já tivemos casos de partos em carros e em estações de metrô.
Muitos médicos abandonaram o país desde que começou a guerra?
A maioria dos médicos ucranianos continuou em seus empregos. Em alguns casos, transferimos alguns especialistas para áreas próximas à linha de frente, onde são necessários. Também temos presentes cerca de 500 especialistas de fora do país. Apesar de muitos ucranianos terem deixado o país por causa dos ataques, podemos dizer que os recursos humanos para a área de saúde estão disponíveis.
O que pode dizer sobre os problemas de saúde mental na população? Como lidar com essa situação?
Um dos temas prioritários para nosso Ministério da Saúde é justamente o desafio que apresentam os problemas de saúde mental. Estimamos que por volta de 14 milhões de ucranianos terão problemas de saúde mental em decorrência da guerra. Nossa primeira-dama, Olena Zelenska, criou um programa nacional voltado para apoio psicológico e saúde mental (a iniciativa é centrada em desenvolver um modelo de tratamento de saúde mental unificado no país). Nesse âmbito, especialistas recebem cursos sobre o tema.
Como é sua rotina?
Nos primeiros 82 dias de invasão russa, eu morei dentro de meu gabinete no Ministério da Saúde. Depois disso — graças aos nossos combatentes, os invasores foram expulsos de Kiev —, ficou mais ou menos fácil. Só então pude ver minha mulher e minha filha, de 17 anos. Neste ano, minha filha, inclusive, decidiu que gostaria de tornar-se uma médica. Foi aceita em duas universidades de medicina e agora já está estudando. É uma menina patriota, ela diz que lutará pelo seu país. Estamos todos otimistas e acreditamos na vitória sobre a Rússia. Isso não sou eu que estou dizendo, é o sentimento geral. É difícil, mas o trabalho vale a pena.
Por Mariana Rosário, O Globo