O filme da Netflix que acalmará seu espírito, mas antes partirá seu coração
A reciclagem de materiais descartáveis, como papel, papelão, plástico, alumínio e vidro não é apenas uma medida a fim de garantir o melhor aproveitamento dos recursos naturais, poupando a Terra de esforços desnecessários. Lamentavelmente, o recolhimento do que grande parte das pessoas considera como lixo — a parte que frequenta supermercados de duas a três vezes por semana, que come fora todos os dias, que tem poder aquisitivo suficiente para consumir o que precisa e o que poderia dispensar — é a única fonte de renda de outra vasta parte da população mundial.
Em Istambul, capital da Turquia, como em São Paulo ou Nova York, catadores enchem seus carrinhos com o lixo precioso dos bairros ricos, e aprendem o ofício desde cedo, principalmente se, na falta dos pais, têm de se virar desde muito pequenos a fim de garantir dinheiro para o básico: comer, comprar uma peça de roupa quando a que usam se rasga pelo tempo de uso e uma dose, por menor que seja, do entorpecente mais barato à mão. Os meninos de rua das grandes metrópoles constituem uma realidade dura nas sociedades contemporâneas, despertando sentimentos controversos. Ao passo que precisam de apoio, de assistência, de escola e, sobretudo, de orientação, essas crianças acabam por representar um perigo a si mesmas e as outras pessoas, em especial quando tomadas pelo vapor barato da droga que usam nos becos escuros e desertos por onde passam.
“Filhos de Istambul” (2021) se vale do mesmo argumento usado por Charles Dickens (1812-1870) em Oliver Twist (1838), acrescentando a discussão sobre o abuso de substâncias psicotrópicas entre seus personagens. Não é porque não fale abertamente sobre drogas que o romance de Dickens seja mais palatável que o filme de Can Ulkay, mas a releitura que o diretor turco faz sobre o clássico do escritor inglês diz muito do que o mundo vem se tornando, mormente de vinte anos para cá, quando o empobrecimento de países tidos como modelo torna-se um problema incontornável em maior ou menor proporção, fenômeno explicável pela lógica da adoção de políticas ideologicamente austeras. A Turquia ainda pode se considerar uma nação próspera — o PIB do país cresceu 11% em 2001 —, mas a figura impetuosa do presidente Recep Tayyip Erdo?an, alinhado com as ditaduras em vigor no Oriente Médio, torna o horizonte turco um tanto nebuloso.
Alheio à instabilidade do humor dos líderes de seu país, Mehmet parece saído das páginas de Charles Dickens para o roteiro de Ercam Mehmet Erdem. Interpretado por Çagatay Ulusoy, o personagem central de “Filhos de Istambul” é o chefe de uma gangue desses tipos perdidos que vivem no e do lixo. Como Fagin, o antagonista dickensiano, Mehmet coordena crianças e jovens adultos, mimando-os com rosquinhas, pagando-lhes o equivalente ao que são capazes de juntar e dando-lhes uma ou outra palavra de incentivo, afinal, sempre ganhou a vida assim e tem conseguido ir longe, economizando o bastante para o momento de alguma emergência, que parece se aproximar. Gonzi, o melhor amigo vivido por Ersin Arici, lhe dá a retaguarda necessária, livrando-o de apuros com a polícia, sempre inventando razões para achacá-lo e agredindo-o quando não lhe arranca algum.
A direção ágil de Ulkay leva o espectador ao um pronto-socorro, quando se fica sabendo que o personagem de Ulusoy tem um grave problema de saúde. Nessa mesma ocasião, Ali cruza o seu caminho, num estado ainda mais dramático que o dele. O garoto, papel de Emir Ali Dogrul, fora abandonado num saco de lixo e agora não respira; depois que recebe atendimento, Ali não tem para onde ir, uma vez que a mãe, de Selen Öztürk, não quer saber dele. Relembrando sua própria vida, Mehmet o acolhe, até porque chamar a polícia só pioraria a situação para os dois. À medida que a trama se adianta, se assiste que Ali era abusado pelo padrasto, da mesma forma que ele. Suas vidas foram cosidas uma à outra e aquela criança, ainda tão pequena, mas já tão infeliz, depende dele.
O diretor faz um registro elucidativo desse submundo, mostrando catadores que disputam tampas de um licor caro, usadas por comerciantes desonestos para vedar garrafas com falsificações da bebida, sem deixar de fora a movimentação suspeita de carros de luxo entrando e saindo de hotéis cinco estrelas. A onipresença de Mehmet, unindo o mundo triste dos homens, meninos e velhos que se juntam para chorar suas mágoas e contar as mentiras ingênuas que os consolam um pouco no Beco das Adversidades, ao universo coruscante em que glamour e crime vão para a cama sem cerimônia, é um dos pontos altos de uma história que prima pela sutileza. A chegada de Ali àquele núcleo, rapidamente cooptado pelos outros moleques e presa do vício em solventes, é uma pequena mostra desse desafio adicional na jornada de Mehmet. O líder dos catadores o protege o quanto pode, contudo resta claro que algum momento há de ser vencido pela força inexorável das ruas.
A mistura de ingenuidade e violência, contida, com crítica social igualmente moderada, puxando mais para o lirismo, resultam numa narrativa com um desfecho que orbita entre o factual e o absurdo, aludindo ainda a Ladrões de Bicicleta (1948), em que Vittorio De Sica (1901-1974) usa a figura da criança a fim de discorrer a respeito do adeus à inocência, instante em que a humanidade sempre morre um pouco. O anti-herói histriônico de Çagatay Ulusoy, cheio de suas tantas dores, na alma e no corpo, disfarça muito bem a doença mental que o consome, alimentada pelo histórico de abuso de drogas que acha esteio na vida quase sem regras da marginalidade. O caldeirão de insânia em que Mehmet é lançado — ou se deixa lançar — é a grande mensagem em “Filhos de Istambul”, tão poético e tão cru.
Filme: Filhos de Istambul
Direção: Can Ulkay
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 8/10
Por revistabula.com