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O filme da Netflix que fará você se contorcer no sofá e não o deixará piscar

Um filme que junta temas como solidão, a angústia devido a uma doença grave, a efemeridade da vida e, por conseguinte, a morte — correlatos, mas que encerram cada qual seu nível de dramaticidade — e a psicopatia de um homem no limite, à beira de um ataque de nervos, por mais que o queira negar, é, no mínimo ousado. Mas pode chegar a ser genial, ainda que só a loucura se comprove.

Em “Creep” (2014), o diretor Patrick Brice narrara o começo da história de Josef, um sujeito que se passa por pai de família exemplar e se descobre à morte por causa de um câncer no cérebro. A fim de deixar uma lembrança para o filho, que vai nascer em poucos meses — argumento usado com emoção por Bruce Joel Rubin em “Minha Vida” (1993) —, Josef contrata Aaron, um cinegrafista falido, que se desloca para a cidadezinha perdida nas montanhas onde o cliente está instalado. Como se viu, não era nada daquilo, e Aaron leva a pior, envolvido pelo temperamento sedutor de Josef.

“Creep 2”, primeira continuação do filme de 2014 — trata-se de uma trilogia —, segue fundindo terror e humor negro em doses homeopáticas. Três anos depois, Josef continua louco, talvez até um tanto pior, mérito da interpretação mediúnica de Mark Duplass, que dá vida a um maníaco inofensivo ao primeiro olhar, mas de quem se deve tomar toda a distância possível, cautela que Sara, a videomaker da vez, encarnada por Desirée Akhavan, dispensa. Brice e Duplass, que se mostra um dos atores mais versáteis da sua geração — dado seu desempenho em produções tão díspares entre si como “Blue Jay” (2016), dirigida por Alexandre Lehmann, e “O Dia da Transa” (2009), de Lynn Shelton (1965-2020) —, retomam a parceria de sucesso no segundo filme da franquia, em que Duplass dá o show que se espera dele, contando com Peach Fuzz, a máscara de lobo, como um coadjuvante à altura (mas que dessa vez divide a cena com um machado nada amistoso).

Partindo da mesma ideia do original, com a diferença de que agora Josef parece disposto a botar as cartas na mesa e se revelar — a não ser pelo detalhe um tanto sinistro de se identificar com o nome de Aaron —, largando pelo caminho as pegadas que o espectador adora investigar, Sara, como o colega de ofício de “Creep”, também se dirige para as montanhas. A personagem de Akhavan quase inventa um pseudônimo quando do primeiro approach com Josef, ainda virtual, mas acaba usando seu próprio nome, o que dá ao assassino a dimensão da vulnerabilidade da moça. O diretor abusa inteligentemente da noção da falsa inocência em Sara para distribuir entre o público as inúmeras pistas falsas de que vai lançar mão ao longo de “Creep 2”, como se soubesse que quem assiste ou é de fato ludibriado ou se deixa passar por ingênuo de propósito, só para apreciar melhor o ótimo trabalho que se entregou até ali.

Fica difícil imaginar o que Brice e Duplass poderiam fazer de inédito a fim de recriar a mágica de “Creep”, mas a verdade é que “Creep 2” obedece a uma lógica completamente distinta do roteiro que lhe deu origem. Na sequência, os dois esmiúçam com um pouco mais de zelo a alma perturbada de Josef, que entra em parafuso depois que completa quarenta anos. Tudo o que se sabe acerca do protagonista continua valendo, e não há mais o que se conjecturar sobre a índole dele; o que está em jogo em “Creep 2” é em que momento o protagonista vai começar a botar as garras para fora, se aproveitando da aparente fraqueza de Sara, dona de um canal no YouTube que não junta nem dez visualizações por vídeo — elemento de dramédia muito bem sacado por Brice, encampado por Akhavan com convicção. O tirocínio da atriz em trabalhos como “Appropriate Behavior” (2014), escrito, dirigido e protagonizado por ela, é fundamental quanto a conferir à sua Sara a aura de mocinha algo atormentada, sem pender nem para o tipo frágil que cai na conversa do primeiro marmanjo que lhe cruza o caminho, nem para o estereótipo da mulher imperscrutável, já conformada com a condição de solteirona, travada, que no fundo tem asco de homem. A esse propósito, a cinegrafista chega a topar uma sugestão que lhe Josef lhe faz — não se pode dizer com certeza se por precisar muito dos mil dólares ao dia que ele oferece, para tentar entender o raciocínio oblíquo do psicopata ou por gosto mesmo —, o que atribui à história um mote sensual refrescante por tão inusitado.

A curta duração de “Creep 2”, 80 minutos — o que, por pouco não o relega à natureza cinzenta de média-metragem —, tanto lhe serve de qualidade como de defeito: há quem goste e quem não goste, da mesma forma que há quem julgue o desfecho do filme exemplo irretocável de como se faz um bom suspense e os que não se conformam com tanta, digamos, licença poética. Todavia, a verdade incontornável é que em “Creep 2”, Brice e Duplass ratificam a superioridade da produção sobre a grande maioria no gênero, alçando Josef à categoria seleta de criminosos que despertam simpatia e repulsa em igual medida, graças ao carisma de seu intérprete, que faz da condição mental perigosa de seu personagem o trampolim para a exposição de um problema que pode se abater sobre a vida de qualquer um, diretamente ou não. A boa arte faz isso — e muitas vezes até evita que esses tipos proliferem.

Rubem Gama

*Servidor público municipal, acadêmico de Direito, jornalista (MTB nº 06480/BA), ativista social, criador da Agência Gama Comunicação e do portal de notícias rubemgama.com. E-mail: contato@rubemgama.com

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